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Ceilândia
Uma transformação profunda da Igreja não é viável sem uma nova compreensão da fé.
Colaboradores

Fé política

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Estaríamos dando provas de miopia histórica se não reconhecêssemos que nos últimos decênios a Igreja caminhou a passos largos no sentido de redescobrir suas origens, encobertas, em grande parte, pelas infidelidades que lentamente se transformaram em estruturas de poder. A este respeito, é muito difícil localizar no tempo algum acontecimento que possa ser considerado como decisivo. Os grandes desvios passam pela mediação de pequenas infidelidades que, não raro, aparentam as feições da fidelidade. Captando a dimensão essencialmente dialética da História, é preciso reconhecer que esta se faz em termos de crítica autocrítica. Quando se abandona uma destas exigências, as consequências podem ser a inoperância histórica (falta de crítica) ou a opressão institucionalizada (falta de autocrítica).

Na caminhada da Igreja da América Latina, a crítica à situação vigente (privilégio, empobrecimento, marginalização) avançou enormemente. Redescobriu-se, em fidelidade à pratica de Jesus, que a fé é essencialmente práxis de vida nova. O compromisso em favor dos marginalizados, o fortalecimento dos movimentos populares, a criação das CEBs e sua formulação teórica em termos de teologia da libertação, comprovam à saciedade o crescimento qualitativo da Igreja com sua capacidade de desencadear forças históricas libertadoras.

Uma consequência de importância fundamental foi a releitura da prática de Jesus. Não é correto afirmar que ele propõe na História uma equivalência indiferenciada. O reconhecimento de que haverá primeiros últimos é essencial para que se compreenda o alcance de sua mensagem. No fundo, é uma questão de realismo histórico. O que há de revolucionário na prática de Jesus é o fato de que ele altera substancialmente o critério desta divisão. Não é mais a observância da Lei, como pretendiam os fariseus, mas a experiência da Graça. Esta alteração tem um alcance político extraordinário porque a estrutura de privilégio da sociedade teocrática de Israel fundamentava-se justamente na observância da Lei. E os marginalizados eram sempre pessoas que não se enquadravam nas exigências da Lei.

Se houve avanços em termos de crítica, o mesmo não se pode dizer em termos de autocrítica. A consequente morte da dialética priva a Igreja de sua força libertadora principalmente porque se passa com excessiva frequência de um fato para outro dentro do mesmo universo significativo. Não configura traição, e menos ainda retorno a situações superadas, reconhecer, em atitude de humilde autocrítica, que, a Igreja da Libertação está em crise porque, em seu afã libertador, negligenciou dimensões irrenunciáveis. Um sério exame de consciência é condição indispensável para uma caminhada de serviço ao homem, em especial ao marginalizado. Há, por conseguinte, alguns aspectos que necessitam ser repensados. Sem pretender fazer uma exposição exaustiva, vamos nos ater a alguns deles, que nos parecem essenciais.

a) Articulação inadequada entre fé e política
A proposta de uma fé política encontrou e vem encontrando sérias resistências em vastos setores da Igreja. Significativo nestas resistências, que por vezes assumem as formas de verdadeira rejeição, é que elas se manifestam também nas pessoas que se encontram na condição de vítimas das relações políticas. Não é difícil reconhecer que houve por parte dos teóricos da nova Igreja e principalmente por parte dos agentes de pastoral um erro pedagógico: a associação entre o que há de mais positivo na concepção do povo (a fé) e algo que este mesmo povo considera como negativo (política) enquanto espaço de negociatas, acordos escusos e fraudes (politicagem). Neste caso, falar em fé política equivale a um verdadeiro atentado contra a fé.

Frente a isso, faz-se necessário um passo atrás no sentido de recuperar a política em sua acepção mais ampla, enquanto tradução objetiva essencial da fé. Toda vez que esta se traduz em obras, torna-se por isso mesmo política. Dentro desta perspectiva, dizer que uma fé sem as obras é morta e dizer que uma fé não política é morta é dizer basicamente a mesma coisa.

Aqui está a razão pela qual não se pode sustentar a existência de duas Histórias. A História é uma só: é a que está radicalmente marcada pela ambiguidade. Este é o único espaço de que a fé pode dispor. É por isso que a experiência religiosa é sempre uma experiência ambígua. Ela tanto pode ser um fator de libertação como um fator de alienação. A História, por conseguinte, torna-se o grande espaço político onde o homem vive sua fé e onde acontece a epifania de Deus. A partir desta recuperação positiva, pode-se falar em fé política em sentido mais restrito, enquanto ligação essencial com as mediações históricas: CEBs, partidos políticos, movimentos populares.

b)Feridos à beira do caminho
As grandes transformações pelas quais passou a Igreja criaram grande esperança em poucos, insegurança e insatisfação na maioria. É possível que alguns não tenham querido caminhar. O mistério insondável da pessoa humana nos proíbe o julgamento da subjetividade moral. Este é o alcance antropológico do “não julgueis” do Evangelho. É provável que muitos não tenham conseguido caminhar. O fato é que há feridos à beira do caminho. Dentre esses, numerosos talvez devam ser classificados entre os irrecuperáveis para uma nova Igreja. A pergunta que surge inevitável é: “O que fazer com eles?”.

A situação é complexa e pode dar margem a possíveis legitimações daqueles que sistematicamente recusam a caminhada por razões de riqueza ou comodismo. De todo modo, é preciso que se diga que a Igreja da Libertação não pode perder a capacidade de misericórdia. Concretamente, duas atitudes são possíveis: 1) A do sacerdote e do levita que passam adiante porque estão ocupados com coisas importantes; 2) A do bom samaritano que se debruça e acolhe. Por outro lado, há que se reconhecer também que não é viável que se atenuem as exigências do Evangelho para incluir todo mundo. A Igreja não é a arca de Noé onde devam caber todos os bichos. O Evangelho é claro e essencialmente um sinal de contradição.

c) Atrelamento eclesiástico dos movimentos populares
A Igreja deve oferecer o melhor de suas forças para que surjam e cresçam os movimentos populares. Afinal, eles são mediações importantes do Reino. Uma questão que tem preocupado e até angustiado cristãos engajados é a de saber se a Igreja deve ou não assumir como própria uma mediação política. Não poderia ela dizer, por exemplo, que tal partido político é seu, propondo-o como o que responde às exigências do Evangelho?

Aqueles que julgam isso não só possível, mas necessário, insistem em que uma eventual recusa situaria fatalmente a Igreja no muro, oscilando no jogo de forças. A verdade é que o compromisso da Igreja é com o Reino, enquanto proposta de vida em plenitude para o homem, e não com suas mediações. Estas devem ser passíveis de crítica sempre que não estejam a serviço da vida.

É, por conseguinte, fundamental que se respeite a legítima autonomia dos movimentos populares. O atrelamento é, na prática, uma declaração de imaturidade. Não se vê porque deveria constituir problema que eles atinjam um nível satisfatório fora da Igreja ou até em oposição a ela. Afinal, o importante não é que a Igreja esteja bem, mas que o homem viva bem.

d) O essencial do homem deve ser o essencial da Igreja

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