Todos os cristãos, católicos ou não, concordam que desde o início dos tempos Deus, por amor, criou o homem (Gn 1,27; Sb 2,23; 1Jo 4,19) e a ele Se revelou (1Cor 2,9-10); e que, após a Queda (Gn 3; Rm 5,12.14), “na plenitude dos tempos”, a sua Palavra – Jesus Cristo – se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,14; Gl 4,4; Flp 2,5).
Trazendo-nos não apenas a derradeira mensagem da Salvação, como ainda conquistando a reconciliação para todos nós (Rm 5,11; 2Cor 5,19; Flp 3,20), através do seu sacrifício na cruz (Flp 2,8; 1Pd 3,18), eis que era – e é – de fato o único mediador entre Deus e os homens (Jo 14,6; At 4,12; Cl 1,20; 1Tm 2,5).
Mas poderíamos perguntar: por onde nos vem a Mensagem da Salvação revelada? Isto porque, apesar de o gênero humano ter sido reconciliado com o Pai por Cristo, ninguém nasce cristão, mas torna-se cristão e nesta Fé deve perseverar até o fim (Mt 10,22; 1Cor 9,27; 1Tm 4,16). Daí a importância de a Palavra de Deus ser cuidadosamente transmitida e corretamente seguida por todos, como o próprio Senhor mandou (Mt 28,19-20; Mc 16,15-16; Lc 24,44-48).
Voltando então à questão inicial, alguém, olhando para todos os versículos a que fizemos referência até agora, poderia prontamente responder: “Apenas pela Bíblia!”. Contudo, se refletirmos melhor, seremos obrigados a afirmar outra coisa…
A Bíblia como Palavra de Deus
Não há dúvida de que a Bíblia é Palavra de Deus e que tudo o que ela diz é verdade, eis que divinamente inspirada. Mas a Palavra de Deus não se limita a umas poucas dezenas de livros dispostos sob uma capa. Ela é mais ampla, de modo que é possível afirmar que nem toda a verdade encontra-se expressa na Bíblia! Em outras palavras: a Bíblia é “Palavra de Deus”, mas não “a única Palavra de Deus”.
Estamos assim diante de algo que diz respeito à transmissão da Palavra, um “problema” de fontes.
Como Jesus teria entregue a Palavra de Deus aos seus discípulos? E como Ele ordenou que esta Palavra fosse entregue posteriormente a todas as gentes? Eis a Tradição Apostólica.
Os Meios de Tradição
Tradição é um termo que provém do latim tradere, do grego παραδοσις (paradosis). Propriamente significa entregar. Trata-se, então, da transmissão de conhecimentos de geração em geração, com vistas à sua viva preservação no tempo já que o ser humano é mortal. A transmissão pode se dar por vários meios, desde que disponíveis à época do transmissor da mensagem.
Nos tempos de Jesus, apenas dois meios estavam disponíveis: o oral e o escrito (2Ts 2,15; 2Jo 1,12). Podendo fazer uso da escrita, Jesus elege, porém, a oralidade para instruir o povo e seus discípulos (Mt 5,1-7,28; 11,7-15; Mc 2,2; 4,1; Lc 9,11; Jo 12,20-36 etc.), de forma que a única vez que Cristo escreveu alguma coisa, o fez na areia (Jo 8,6.8), mas tais palavras não nos foram transmitidas, sequer oralmente.
E antes de ascender aos céus, Cristo mandou que os Apóstolos fizessem exatamente o mesmo, isto é, que pregassem o Evangelho de viva voz (Mc 16,15) a todas as nações; não mandou escrever absolutamente nada… Portanto, é aqui onde se inicia de fato a “Tradição Apostólica”.
A Tradição Apostólica precede a Bíblia
Inicialmente, os discípulos dispunham do mesmíssimo material de que dispunha Jesus: as Escrituras do Antigo Testamento (Lc 24,32.45; Jo 2,22; 5,39; 7,15; At 8,35 etc.) e as tradições orais dos judeus (Mt 23,2-3; Jd 1,9.14-15). No entanto, era absolutamente necessário ensinar as Boas Novas entregues por Cristo (Mt 28,19-20).
Pois embora o Antigo Testamento prestasse testemunho Dele (Jo 5,39), não o fazia de maneira clara e direta. Foi pela pregação oral que muitos passaram a crer e dar as suas vidas por Jesus (Mt 10,18.32.39; 16,25; Mc 8,35; 13,9; Lc 9,24; Jo 5,31-32.36;12,25; At 4,33; 6,8-7,60; 8,25; 10,43 etc.).
Ademais, se nos atermos apenas aos Onze Apóstolos originais (Mt 10,2-4; Mc 3,16-19; At 1,13), a Matias (o sucessor de Judas Iscariotes, cf. At 1,15-26) e a Paulo (chamado diretamente pelo Senhor glorioso, cf. At 9,1-22), constataremos que só dois – Mateus e João – escreveram Evangelhos, mas não tudo o que ouviram e também pregavam pessoalmente (cf. Jo 20,30; 21,25);
Marcos e Lucas não tiveram contato direto com Jesus, mas seus Evangelhos correspondem, respectivamente, à pregação oral de Pedro e Paulo – ou seja: escreveram algo do que receberam de seus mestres. E se considerarmos todo o Novo Testamento, verificaremos que deste grupo de Treze Apóstolos, apenas seis (menos da metade) deixaram alguma coisa escrita:
Mateus, João, Pedro, Tiago, Judas e Paulo. Porém é indiscutível que todos eles, bem como os sucessores e discípulos destes também preferiram pregar de viva voz a escrever. Sinal de que confiavam neste meio de transmissão (2Ts 2,15; 2Tm 2,2)
A Bíblia procede da Tradição Apostólica
Dissemos que o material de que os Discípulos dispunham era apenas as Escrituras do Antigo Testamento e certas tradições orais dos judeus. A isto acrescentavam oralmente a Mensagem do Senhor e uma ou outra sentença escrita, dada a falta de recursos financeiros das primitivas comunidades e os altos custos da escrita. A pregação da Palavra sempre foi a prioridade, de modo que Paulo expressamente afirmava: “A fé vem pelo ouvido” (Rm 10,17).
Logo, não é de se estranhar que as Escrituras do Novo Testamento surgiram de maneira acidental e, de certa forma, até mesmo inconsciente no seio da Igreja. Os primeiros escritos são as cartas de Paulo aos Tessalonicenses, em torno do ano 52; o primeiro Evangelho – o de Marcos – surge entre os anos 55 e 65, isto é, mais de vinte anos após o nascimento da Igreja (At 2)! O último escrito – o Apocalipse – data de cerca de 95!
Considerando também que esses documentos surgiam nos mais diversos pontos geográficos da Ásia e da Europa – Palestina, Éfeso, Roma, Síria etc. – é notório que as primeiras gerações cristãs não tiveram contato com todos eles; e muitíssimos dos primeiros convertidos não chegaram a ver absolutamente nada… Com efeito, se certos círculos judeus do séc. I d.C. duvidavam da inspiração de certos escritos do Antigo Testamento (Tobias, Judite, Eclesiástico, Sabedoria, 1-4 Macabeus,
Ester, Cântico dos Cânticos, Ezequiel etc.), o mesmo ocorria em ambientes cristãos, especialmente no tocante a Hebreus, Tiago, 2Pedro, Judas, 2-3João, Apocalipse, Ascensão de Isaías e Henoc. Tal controvérsia durou até o final do séc. IV, quando a Igreja fixou o cânon escriturístico do Antigo e do Novo Testamentos, dando à luz a nossa Bíblia, sem contudo descartar a Tradição oral.
Assim, é mais do que óbvio que os cristãos dos primeiros quatro séculos, mesmo sem possuir a Bíblia, receberam a plena Palavra de Deus tal como propunha a Igreja, guardiã do Depósito da Fé, “coluna e fundamento da Verdade” (1Tm 3,15).
A Importância Sempre Atual da Tradição
No início da Igreja, quando ainda não havia uma Bíblia, heresias, cismas e divisões surgiam no Cristianismo, em razão de ensinos estranhos aos Apóstolos. A Igreja, porém, manteve a sua unidade apelando para a Tradição Apostólica (sobretudo oral), entre elas a sucessão apostólica dos Bispos, em especial a do Bispo de Roma, sede de São Pedro.
O nascimento da Bíblia no final do séc. IV também não impediu que os mesmos problemas continuassem a ocorrer; mas a Igreja permaneceu unida mais uma vez apelando para a Tradição Apostólica (incluindo agora a Bíblia).
A partir do séc. XVI, quando se passou a questionar a autoridade da Igreja Católica tentando submetê-la “apenas à Bíblia”, deram-se dois efeitos contrários: por um lado, a maior parte do Cristianismo manteve a Tradição Apostólica (oral e escrita), ficando unida a Clemente, Inácio, Policarpo, Cipriano,
Agostinho e tantos outros cristãos primitivos; outra parte, menor, resolveu seguir “somente a Bíblia” e, paradoxalmente, passou a divergir em doutrina, disciplina e moral não apenas com os primeiros cristãos, mas também entre eles mesmos… Das inovações surgiram novas tradições, segundo seus respectivos fundadores e seguidores, e a consequente incerteza, entre eles, dos legítimos ensinamentos de Cristo…