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CARTA ENCÍCLICA DILEXIT NOS DO SANTO PADRE FRANCISCO SOBRE O AMOR HUMANO E DIVINO DO CORAÇÃO DE JESUS
Documentos da Igreja

Encíclica “Dilexit Nos” – Papa Francisco

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“Eu vos amei” (Jo 15, 9.12). Disse também: “Chamei-vos amigos” (Jo 15, 15). O seu coração aberto precede-nos e espera-nos incondicionalmente, sem exigir qualquer pré-requisito para nos amar e oferecer a sua amizade: Ele amou-nos primeiro (cf. 1 Jo 4, 10). Graças a Jesus, «conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele» (1 Jo 4, 16).

CARTA ENCÍCLICA
DILEXIT NOS
DO SANTO PADRE FRANCISCO
SOBRE O AMOR HUMANO e DIVINO do CORAÇÃO DE JESUS

CAPÍTULO I
A IMPORTÂNCIA DO CORAÇÃO
Para exprimir o amor de Jesus Cristo, recorre-se frequentemente ao símbolo do coração. Há quem se interrogue se isto atualmente tenha um significado válido. Porém, é necessário recuperar a importância do coração quando nos assalta a tentação da superficialidade, de viver apressadamente sem saber bem para quê, de nos tornarmos consumistas insaciáveis e escravos na engrenagem de um mercado que não se interessa pelo sentido da nossa existência.

O que entendemos quando dizemos “coração”?
No grego clássico profano, o termo kardía designa a parte mais íntima dos seres humanos, dos animais e das plantas. Em Homero, indica não só o centro corpóreo, mas também a alma e o centro espiritual do ser humano. Na Ilíada, o pensamento e o sentimento pertencem ao coração e estão muito próximos um do outro. O coração aparece como o centro do desejo e o lugar onde são forjadas as decisões importantes duma pessoa.

Em Platão, o coração assume, de certa forma, uma função “sintetizante” do que é racional e das tendências de cada pessoa, uma vez que tanto o comando das faculdades superiores como as paixões se transmitem através das veias que convergem no coração. Assim, desde a antiguidade advertimos a importância de considerar o ser humano não como uma soma de diferentes capacidades, mas como um complexo anímico-corpóreo com um centro unificador que dá a tudo o que a pessoa experimenta um substrato de sentido e orientação.

A Bíblia diz que «a Palavra de Deus é viva, eficaz […] e discerne os sentimentos e as intenções do coração» (Heb4, 12). Deste modo, fala-nos de um núcleo, o coração, que se esconde por detrás de todas as aparências, e até mesmo de pensamentos superficiais que nos confundem. Os discípulos de Emaús, na sua misteriosa caminhada com Cristo ressuscitado, viviam um momento de angústia, confusão, desespero, desilusão. Mas, para além disso e apesar de tudo, acontecia algo no seu íntimo: «Não nos ardia o coração, quando Ele nos falava pelo caminho?» (Lc24, 32).

O coração é igualmente o lugar da sinceridade, onde não se pode enganar ou dissimular. Costuma indicar as verdadeiras intenções, o que se pensa, se acredita e se quer realmente, os “segredos” que não se contam a ninguém, em suma, a verdade nua e crua de cada um. O que não é aparência ou mentira, mas autêntico, real, inteiramente “pessoal”. É por isso que Sansão, que não havia revelado a Dalila o segredo da sua força, foi interpelado por ela deste modo: «Como podes dizer “Amo-te”, se o teu coração não está comigo?» (Jz16, 15). Só quando lhe revelou o seu segredo tão escondido é que ela «viu que ele lhe abrira todo o coração» (Jz16, 18).

Frequentemente, esta verdade íntima de cada pessoa está escondida debaixo de muita superficialidade, o que torna difícil o autoconhecimento e ainda mais difícil conhecer o outro: “Nada mais enganador que o coração, tantas vezes perverso: quem o pode conhecer?” (Jr17, 9). Compreendemos assim porque é que o livro dos Provérbios nos exorta: “Vela com todo o cuidado sobre o teu coração, porque dele jorram as fontes da vida. Preserva-te da linguagem enganosa, afasta de ti a maledicência” (Pr4, 23-24).

A mera aparência, a dissimulação e o engano danificam e pervertem o coração. Para além das muitas tentativas de mostrar ou exprimir o que não somos, é no coração que se decide tudo: ali não conta o que mostramos exteriormente ou o que ocultamos, ali conta o que somos. E esta é a base de qualquer projeto sólido para a nossa vida, porque nada que valha a pena pode ser construído sem o coração. As aparências e as mentiras só trazem vazio.

Como metáfora, quero recordar algo que já contei em outra ocasião: «Recordo que no carnaval, quando éramos crianças, a avó nos preparava doces, e a que ela fazia era uma massa muito fina. Depois colocava-a no azeite e aquela massa crescia e quando nós a comíamos, estava vazia. Aqueles doces em dialeto chamavam-se “mentirinhas”. E era precisamente a avó quem explicava a razão: aqueles doces “são como as mentiras, parecem grandes, mas dentro não têm nada, não há nada verdadeiro, não há substância alguma”.

Em vez de procurar uma satisfação superficial e de representar um papel diante dos outros, é melhor deixar que surjam perguntas decisivas: quem realmente sou? O que procuro? Que sentido quero dar à vida, às minhas escolhas e ações? Por que razão e para que fim estou neste mundo? Como vou querer avaliar a minha existência quando ela terminar? Que sentido quero dar a tudo o que vivo? Quem quero ser perante os outros? Quem sou diante de Deus? Estas perguntas conduzem-me ao meu coração.

Regressar ao coração
Neste mundo líquido, é necessário voltar a falar do coração; indicar onde cada pessoa, de qualquer classe e condição, faz a própria síntese; onde os seres concretos encontram a fonte e a raiz de todas as suas outras potências, convicções, paixões e escolhas. Movemo-nos, porém, em sociedades de consumidores em série, preocupados só com o agora e dominados pelos ritmos e ruídos da tecnologia, sem muita paciência para os processos que a interioridade exige. Na sociedade atual, o ser humano “corre o perigo de se desorientar do centro de si mesmo”.

“O homem contemporâneo encontra-se com frequência transtornado, dividido, quase privado de um princípio interior que crie unidade e harmonia no seu ser e no seu agir. Modelos de comportamento infelizmente bastante difundidos, exaltam a sua dimensão racional-tecnológica ou, ao contrário, a instintiva”. Falta o coração.

Ora, o problema da sociedade líquida é atual, mas a desvalorização do centro íntimo do homem – o coração – vem de mais longe: encontramo-la já no racionalismo grego e pré-cristão, no idealismo pós-cristão ou no materialismo nas suas diversas formas. O coração teve pouco espaço na antropologia e é uma noção estranha ao grande pensamento filosófico. Preferiram-se outros conceitos, como a razão, a vontade ou a liberdade. O seu significado permanece impreciso e não lhe foi atribuído um lugar específico na vida humana. Talvez porque não fosse fácil colocá-lo entre as ideias “claras e distintas” ou porque o conhecimento de si mesmo supõe dificuldade: parece que a realidade mais íntima é também a mais afastada do nosso conhecimento.

Talvez porque o encontro com o outro não se consolida como caminho para nos encontrarmos a nós próprios, já que o pensamento conduz, uma vez mais, a um individualismo doentio. Muitos, para construir os seus sistemas de pensamento, sentiram-se seguros no âmbito mais controlável da inteligência e da vontade. E, ao não se encontrar um lugar para o coração, como algo distinto das faculdades e das paixões humanas consideradas separadamente, também não se desenvolveu suficientemente a ideia de um centro pessoal, em que a única realidade que pode unificar tudo é, em última análise, o amor.

Ao não se dar o devido valor ao coração, desvaloriza-se também o que significa falar a partir do coração, agir com o coração, amadurecer e curar o coração. Quando não se consideram as especificidades do coração, perdemos as respostas que a inteligência por si só não pode dar, perdemos o encontro com os outros, perdemos a poesia. E perdemos a história e as nossas histórias, porque a verdadeira aventura pessoal é aquela que se constrói a partir do coração. No fim da vida, só isto contará.

É preciso afirmar que temos um coração e que o nosso coração coexiste com outros corações que o ajudam a ser um “tu”. Como não podemos desenvolver longamente este tema, recorreremos ao personagem chamado Stavroguine, de um romance de Dostoievski [8]. Romano Guardini aponta-o como a própria encarnação do mal, porque a sua principal caraterística é não possuir coração: «Stavroguine, porém, não possui coração. O seu espírito é, portanto, frio e vazio e o seu corpo intoxica-se de indolência e sensualidade “animalesca”. Não pode ir até junto dos outros homens nem estes podem chegar na realidade até ele.

Porque é o coração que origina a proximidade; é pelo coração que me encontro junto dos outros e os outros estão igualmente junto de mim. Só o coração pode acolher, dar refúgio. A interioridade é o ato e esfera do coração. Stavroguine, porém, encontra-se longe, […] muito afastado também de si mesmo. O homem está em intimidade com o seu íntimo no coração, não no espírito. Estar em intimidade com o íntimo, no espírito, não é do domínio humano. Mas quando o coração não vive, o homem encontra-se ao lado de si mesmo.

É necessário que todas as ações sejam colocadas sob o “controle político” do coração, que a agressividade e os desejos obsessivos sejam acalmados no bem maior que o coração lhes oferece e na força que ele tem contra os males; que a inteligência e a vontade sejam também postas ao seu serviço, sentindo e saboreando as verdades em vez de as querer dominar, como algumas ciências tendem a fazer; que a vontade deseje o bem maior que o coração conhece, e que a imaginação e os sentimentos se deixem também moderar pelo bater do coração.

Em última análise, poder-se-ia dizer que eu sou o meu coração, porque é ele que me distingue, que me molda na minha identidade espiritual e que me põe em comunhão com as outras pessoas. O algoritmo que atua no mundo digital mostra que os nossos pensamentos e as decisões da nossa vontade são muito mais “standard” do que pensávamos. São facilmente previsíveis e manipuláveis. Não é o caso do coração.

Trata-se de uma palavra importante para a filosofia e a teologia, que procuram alcançar uma síntese integral. Na verdade, a palavra “coração” não pode ser explicada plenamente pela biologia, pela psicologia, pela antropologia ou por qualquer outra ciência. É uma daquelas palavras originais que “significam realidades que dizem respeito ao homem no seu conjunto enquanto pessoa corpóreo-espiritual”. Assim, o biólogo não é mais realista quando fala do coração, porque vê apenas um aspecto dele e o todo não é menos real, pelo contrário, é-o ainda mais.

Tampouco uma linguagem abstrata poderia ter o mesmo significado concreto e, simultaneamente, integrador. Se o “coração” leva ao mais íntimo da nossa pessoa, permite também que nos reconheçamos na nossa integralidade e não apenas num mero aspecto isolado.

Por outro lado, este poder único do coração ajuda-nos a compreender porque é que se diz que quando apreendemos uma realidade com o coração podemos conhecê-la melhor e mais plenamente. Isto conduz-nos inevitavelmente ao amor de que esse coração é capaz, porque “o mais íntimo da realidade é amor”. Para Heidegger, segundo a interpretação de um pensador contemporâneo, a filosofia não começa com um conceito puro ou uma certeza, mas com uma comoção: «O pensamento deve ser comovido antes de trabalhar com conceitos, ou enquanto trabalha com eles.

Sem a comoção, o pensamento não pode começar. A primeira imagem mental seria a pele arrepiada. É a comoção que primeiramente dá o que pensar e perguntar. A filosofia ocorre sempre numa tonalidade afetiva fundamental ( Stimmung)”. E é aqui que surge o coração, que guarda as tonalidades afetivas fundamentais, […] trabalha como “guardião da tonalidade afetiva fundamental. O “coração” ouve não-metaforicamente a “voz silenciosa” do ser ao se deixar afinar e determinar por ela.

CARTA COMPLETA

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